
Quando eu era nova, com onze anos de idade, lembro do dia que meu pai saiu de casa, bêbado, e sofreu um acidente seríssimo. Ninguém sabe como ele sobreviveu. Era a matéria de todo jornal.
“Homem escapa da morte por um triz, ao se arremessar pela janela, na curva da morte”.
No dia em questão, meu pai tinha bebido muito, batido na minha mãe outra vez e saiu dirigindo sem rumo. Ele mesmo falava que ia procurar a morte... Credo, chego a ficar arrepiada de lembrar.
Eu e meus irmãos não conseguíamos defender minha mãe. Éramos pequenos demais para enfrentar um homem daquele tamanho que saía de si sempre que bebia.
Depois desse dia, meu pai parou de beber. Se tornou alguém melhor, mas minha mãe já havia apanhado tanto que deu continuidade na papelada do divórcio e se separou alguns meses depois, mudando para longe. Foi bom para ela, ela tem uma vida feliz agora.
Meu pai também, ele que cuidou de mim e de meus irmãos. Eu era a mais velha, medrosa, raquítica e a mais inteligente dos três filhos dele. Meu irmão do meio tirou carteira de carro antes de mim, dirigia com responsabilidade, não bebe e nem fuma. Até tentou me ensinar, mas eu tinha medo.
Meu pai sempre o alertou com a tal curva da morte. Ele usava a mesma frase sempre que finalizava o conselho: “não pare para a menina sem pés, continue dirigindo”.
Eu acho que era isso que me amedrontava, mas tentei e consegui a minha habilitação para dirigir aos vinte e dois anos. Um ano depois que meu irmão do meio.
Comecei buscando o meu irmão mais novo na escola, ela tinha treze anos na época. Depois passei a ir mais longe, dirigia até o shopping, até as cidades vizinhas, andava em estrada de terra. Mas não passava na tal curva da morte.
Essa tal curva fica perto da igreja abandonada aqui da cidade. Não tem mais nada lá, o mato já tomou conta de quase tudo, tem algumas paredes ainda de pé. E lá já houve vários acidentes fatais. Todos envolvendo um automóvel ou veículo com rodas. Dizem que, antigamente, alguns cavalos disparavam e faziam as carroças se chocarem contra a grade na mureta do pátio da igreja.
Eu precisei buscar uma encomenda, era um bolo de aniversário surpresa para uma colega de trabalho. E como eu estava atrasada achei melhor passar pelo tal trajeto. Economizaria vinte minutos... E o que são vinte minutos, não é mesmo!?
Eu dirigi um pouco mais rápido, mas dentro do limite. Ao chegar na curva, vi uma garota atravessando a rua. Pisei com tudo no freio, mas o carro só acelerava mais e mais. Por uns segundos eu entendi o que meu pai falava: “a menina sem pés”.
Eu vi a garota flutuar sobre o chão, seus pés provavelmente estavam tampados pelo vestido que ondulava ao vento. Finalmente eu percebi o que estava errado... Enquanto antes eu jurava que pisava no freio, durante o encontro com a menina fantasma, que passou pelo carro, eu vi que pisava no acelerador. Fui de encontro ao que sobrou da mureta e ouvi a risada maligna daquela menina.
O carro captou e parou entre as árvores. Por pouco meu crânio não foi perfurado pelas grades da mureta. Eu acordei uma semana depois, toda quebrada. Meu pai ficou feliz em me ver despertar, correu e chamou meus irmãos.
Quando ficamos a sós tivemos uma conversa meio macabra. Ele me contou o que viu naquele dia, o que realmente aconteceu ele.
Meu pai disse que algo andava com ele, desde que ele e seus amigos foram beber no cemitério do vilarejo deles. Algo ruim, que o fazia fazer mal as pessoas.
No dia em que ele sofreu o acidente, ele viu a mesma coisa que eu. Só que antes do caminhão se chocar, algo o jogou para fora da cabine.
Ele diz que lembra de ver a menina flutuando e zangada brigando contra um vulto grande e assustador até que os dois sumiram.
Papai disse que a única pessoa que soube disso foi minha mãe. E hoje eu sei o real motivo da separação... Não culpo a mamãe, ela sofreu muito. Eu perdoei meu pai... E depois de tudo me mudei. Busquei meu pai para morar na mesma cidade que eu. Arrumei empregos para meus irmãos, cunhado e cunhada também.
Queria tirar mais gente daquela cidade... mas a vida não é tão simples. Para cada um que sai de lá, ou que morre naquela curva, dois outros vão morar lá.
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