top of page

Lençóis

Foto do escritor: Odilon JúniorOdilon Júnior
Lençóis - Pequenos Contos Medonhos - Odilonpjr

Quando éramos novas, fui, com minha irmã gêmea, morar com minha avó em uma cidadezinha pequena. Estava difícil para meus pais, o emprego deles na cidade grande pagava mal, e naquela época pra conseguir sustentar uma família com três filhos tinha que trabalhar muito. Então minha vó convenceu meus pais a mandar a gente para a casa dela, ficando só eles e meu irmão mais velho na cidade grande.

Depois de uns cinco anos morando com ela, já moças, como ela dizia, nós completamos treze anos e vovó queria nos ensinar um ofício para que ganhássemos um dinheiro extra e a ajudasse em seu serviço. Vovó era lavadeira, deixava tudo limpo, um branco mais branco que o algodão, e deixava tudo com um perfume maravilhoso.

Perto da cidade que a gente morava havia um hospício e uma prisão, e de lá vinham roupas de cama para lavar. De dois em dois dias, praticamente, entregávamos os lençóis limpos e pegávamos mais para lavar. Havia alguns que eram entregues em sacolas marrons, e só minha vó os lavava. Ela levava essas sacolas para um quartinho, fechava a porta e os lavava lá dentro. Eu já sabia, mesmo sem ver as encomendas chegando, quando minha avó havia lavado os lençóis das sacolas marrons, ela ficava estranha, cansada e não nos deixava sair à noite.

Certo dia, vovó lavou tanta roupa de cama que ao final, após estender todos nos varais do terreiro, ela se deitou, reclamando de dor, e adormeceu pouco após o almoço. Eu tinha acabado de voltar sozinha da escola, pois minha irmã foi fazer trabalho com o grupo dela. Almocei e me deitei um pouco. Ouvi sussurros do lado de fora da casa e fui ver se era alguma amiga passando por ali ou mesmo a Bianca, minha irmã.

Ninguém ali. Ninguém na rua... Ouvi os sussurros de novo e caminhei para o terreiro. Era um grande terreiro com inúmeros varais e muitas plantas nas laterais. A casa da vovó possuía aqueles muros de placas de concreto, imaginei que alguém havia pulado...

- Bianca, é você? – perguntei enquanto caminhava pelos lençóis.

Eu ouvia sussurros e risadas vindo de todas as direções. O sol estava quente, comecei a ficar meio zonza. Vi alguns pés sujos parados atrás de um lençol manchado. Vovó devia estar tão cansada que não conseguiu tirar a mancha.

Os pés correram para a direita e os segui. Quando olhei para trás, vi minha irmã parada na porta da cozinha com uma cara apavorada. Perguntei o que ela tinha e ela não respondeu. Caminhei de volta até ela e percebi vários outros pés sujos, atrás dos lençóis que formavam um corredor até a porta da cozinha. Na metade do caminho os lençóis se juntaram em cima de mim, como se algo quisesse me matar. Eu sentia várias mãos me apertando, tampando minha boca por cima do lençol, apertando meu pescoço, e eu ouvia os gritos da minha irmã e o desespero da minha avó tentando me tirar de dentro dos lençóis.

Acordei no hospital, já era noite. Como a casa de minha avó era afastada, ninguém ouviu e correu para ajudar, acabei desmaiando antes de me tirarem de lá. Bianca disse que vovó voltou para casa e foi lavar os lençóis de novo, exceto um, todos caíram no chão e se sujaram.

- Vovó está brava comigo?

- Lógico que não! – afirmou minha irmã. – Você não fez nada. Eu também vi aquelas pessoas lá.

- Pessoas?

- Sim! Era por causa delas que você estava lá, não era?

- Não... – respondi assustada me sentando na cama. – Eu ouvi sussurros no terreiro e fui ver, depois vi uns pés sujos no lençol e os segui. Achei que era você.

- Helena, eu juro que vi umas pessoas estranhas lá no quintal.

- Você contou isso para a vovó?

- Sim. Mas ela não deu importância, disse que tinha que entregar tudo limpo amanhã, outro dia a gente conversaria. Ela pediu para eu cuidar de você hoje.

- Vovó sabe de algo mais. E deve estar em perigo.

A enfermeira que estava na porta ouviu nossa conversa e contou o que sabia; o hospício e a prisão perto da cidade eram conhecidos por serem assombrados. Ninguém gostava de trabalhar de lá, só ia quem realmente precisava. Dizem que a lavanderia de lá pegou fogo e várias pessoas morreram, dentre elas funcionários e pacientes. Depois disso, todo serviço que pode ser terceirizado foi repassado para a cidade. As cozinheiras mandam marmitas descartáveis para lá, os faxineiros intercalam o dia de ir e a roupa de cama é dividida e levada para três lavadeiras apenas, mas nenhuma quis pegar o serviço.

Rapidamente eu saí da cama, vesti a roupa e fui, junto de minha irmã, até a casa da vovó. Chegamos lá a casa estava toda escura, os móveis rangiam muito e dava para ouvir umas risadas assustadoras perambulando pela casa. Corremos para o quartinho sem olhar para trás e lá, a luz de velas, tremendo toda, estava vovó lavando os lençóis e chorando, pedindo para que os espíritos ruins nos deixassem em paz.

Não pensamos duas vezes, fechamos a porta e garramos no serviço também. Ouvimos socos fortes nas portas e gritos tentando nos assustar. A água da torneira as vezes jorrava sangue, aranhas e outros insetos andavam em nossos braços, foi horrível. Mas aquele dia, Bianca e eu nos tornamos mais fortes, vencemos o medo e lavamos os lençóis todos. Eram quase três da madrugada quando a luz voltou, os gritos sessaram e podemos sair do quarto.

Levamos vovó até a cama, voltamos e estendemos os lençóis, com medo, claro. Estava tudo escuro. Mas era preciso.

Logo o sol raiou, preparamos um café e vovó se levantou. Contou que aquilo acontecia toda vez que ela lavava os lençóis das sacolas marrons, mas nunca nada havia ido ao terreiro. A partir desse dia nós passamos a lavar esses lençóis e com o passar do tempo essas manifestações diminuíram. Até hoje eu não sei o porquê fui atacada daquele jeito.

Comentários


bottom of page